Candidato à prefeitura, Fábio Henrique Gardingo (Cidadania) faz parte de uma família que levou multas milionárias do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama) por desmatamento em Boca do Acre e Lábrea (AM), duas entre as principais fronteiras do desmatamento na Amazônia. Seu tio Tãozinho Gardingo e sua tia Esperança levaram autuações de 2,08 milhões de reais, em 2004 (o equivalente hoje, a 6,32 milhões de reais), e 1,15 milhão de reais, no ano passado, por crimes contra a flora nos dois municípios entre os 267 que hoje compõem o Arco do Desmatamento. Popularizado no fim dos anos 1990, o termo define uma faixa de 256 municípios que concentram os maiores índices de desmatamento da Amazônia, começando na divisa entre Pará e Maranhão, nos arredores da rodovia Belém-Brasília, e descendo até o Mato Grosso, onde faz um movimento de arco que se estende até a divisa do Acre com o Amazonas.
Fabinho Gardingo não é um político do Amazonas ou de algum dos outros oito Estados — Mato Grosso, Maranhão e os demais da região Norte — que compõem a Amazônia Legal. Ele é candidato em Matipó, um pequeno município cafeeiro na Zona da Mata, em Minas Gerais. Já foi prefeito duas vezes; Sebastião Gardingo, o Tãozinho, uma vez. O tio de Fabinho e seu pai, Antônio Fábio, já estiveram na lista suja do trabalho escravo, por exploração ilegal de mão-de-obra no Amazonas: em julho de 2011, 42 trabalhadores foram libertados de suas fazendas. Os Gardingo pagaram parte das multas ambientais, mas existem outras que aguardam pagamento, inclusive na dívida ativa, e em grau de recurso dentro do processo administrativo do Ibama.
Tãozinho também foi alvo, no ano passado, da Operação Ojuara, da Força-Tarefa Amazônia de Combate ao Desmatamento Ilegal, Grilagem e Violência Agrária do Ministério Público Federal (MPF). Segundo a denúncia, ele fazia parte de uma organização criminosa responsável por invasões de terras da União e desmatamentos em larga escala em Boca do Acre (AM). Segundo os procuradores, ele e outros fazendeiros formaram milícias para a apropriação de terras públicas e de pequenos posseiros. Juntos, foram responsáveis pela destruição de uma área de 86.091 hectares de Floresta Amazônica. A reportagem procurou Tãozinho para ouvi-lo sobre o assunto, mas não obteve retorno dele nem de outros citados ao longo do texto. Tãozinho deixou de usar a tornozeleira em maio, após ter sido preso na operação.
Prefeitos multados pelo Ibama acumulam terras
Em pesquisa a partir da lista de candidatos nos 5.570 municípios brasileiros, o observatório De Olho nos Ruralistas identificou — em levantamento exclusivo para o EL PAÍS — 158 candidatos a prefeito com multas do Ibama por desmatamento na Amazônia Legal. Em outubro a Agência Pública já havia divulgado uma lista com 90 candidatos a prefeito punidos na região, mas que incluíam autuações somente até a 2010. A nova lista registra apenas as multas por desmatamento, e não outros crimes ambientais, como aqueles contra a fauna. Ela não inclui autuações aplicadas às empresas dos candidatos — pelo menos mais três prefeitáveis foram multados por desmatamento como sócios dessas empresas. Por exemplo, Sidney Rosa, um exportador de madeira em Paragominas (PA) que já foi deputado estadual e secretário de Desenvolvimento Econômico em seu Estado. Durante a série De Olho nos Desmatadores, no início do ano, o observatório mostrou que apenas 1,4% das autuações do Ibama por flora, nos últimos 25 anos, foram pagas. Entre os políticos citados aqui, os Gardingo foram exceções parciais — os demais não pagaram nada.
Mais da metade desses candidatos às prefeituras autuados por crimes contra a flora, 82 entre os 158, receberam essas multas nos 267 municípios do Arco do Desmatamento. A lista de municípios, utilizada como base no levantamento, foi reformulada pelo Instituto Socioambiental (ISA) em 2019, para incluir onze municípios que concentraram a maior parte do desmatamento observado pelo Prodes, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), entre 2008 e 2018.
Fazem parte do Arco do Desmatamento os municípios no sul do Pará onde fazendeiros organizaram, em agosto do ano passado, o Dia do Fogo, quando incêndios simultâneos foram ateados em alinhamento à política de Jair Bolsonaro de diminuir o combate aos crimes ambientais. O agronegócio é uma das bases mais fiéis ao presidente, que, em contrapartida, acena com menos fiscalização e com alterações legais para facilitar a ocupação de terras públicas, inclusive os territórios indígenas e quilombolas. É a concretização do que o ministro do Meio Ambiente, Ricardo Salles, durante uma reunião ministerial em abril, chamou de “passar a boiada”.
Candidatos possuem ‘uma Palestina’ na Amazônia
Não é por falta de terras — e de gado — que os candidatos que disputarão as prefeituras no domingo em municípios da Amazônia Legal deixarão de passar essa boiada. Ao todo, esses prefeitáveis declararam possuir pelo menos 504.000 hectares na Amazônia, uma área equivalente à do Distrito Federal. Desse total, conforme a pesquisa realizada pelo De Olho nos Ruralistas nas declarações de bens entregues ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), 277.000 hectares ― ou 55% ― estão dentro do Arco do Desmatamento. Outro levantamento do observatório mostra que 1.014 candidatos pecuaristas em todo o Brasil possuem pelo menos 144.000 cabeças de gado na Amazônia Legal, 47% de todo o rebanho — subdeclarado — registrado por eles no TSE.
Só que a ocupação da Amazônia por candidatos não se restringe àqueles que disputam cargos eletivos na região. Assim como a família Gardingo, políticos de outros Estados acumulam 41.000 hectares ao longo do Arco do Desmatamento, aumentando a pressão sobre a floresta. Os dados do TSE mostram que 64 “forasteiros” possuem terras na Amazônia Legal, totalizando 163.000 hectares, ou quatro vezes a área urbana de Goiânia (GO), Estado de origem de boa parte dos candidatos a prefeito com terras na região. É em Goiás que mora o recordista da lista, o pecuarista Naçoitan Araújo Leite (PSDB), dono de 80.000 hectares entre Pontes Altas e Almas, no Tocantins. Dono de um patrimônio de 20,8 milhões de reais, o atual prefeito de Iporá (GO), teve o mandato cassado em setembro, acusado de abuso de poder econômico e gastos ilícitos durante a campanha, no momento impugnada pelo TSE.
Paulistas, mineiros, gaúchos e cearenses se concentram na fronteira leste do arco, ao lado dos goianos, entre os Estados de Mato Grosso, Tocantins e Maranhão. Candidato à reeleição em Cruz (CE), o tucano João Muniz Sobrinho declarou 31.000 hectares na Amazônia maranhense, entre os municípios de Açailândia, Buriticupu, Santa Luzia e Bom Jesus das Selvas. Dono de 103 imóveis rurais ― 33 deles na região amazônica ― e de uma fortuna declarada de 75,9 milhões de reais, o pecuarista e investidor imobiliário Muniz possui histórico de conflitos com comunidades sem-terra no Maranhão. Em 2003, cerca de cem famílias foram despejadas de duas fazendas improdutivas pertencentes ao político, onde viviam havia dois anos, em Bom Jesus das Selvas, um dos municípios no Arco do Desmatamento.
Ao todo, somando locais e forasteiros, os candidatos às prefeituras nas eleições de 2020 detêm 667.000 hectares na Amazônia Legal. Para se ter uma ideia, a Palestina possui 602.000 hectares, juntando a Cisjordânia com a Faixa de Gaza. As Ilhas Canárias possuem 745.000 hectares. Esse território dos políticos na Amazônia certamente é ainda maior: dos 939 políticos que declararam bens rurais na região, 308 não descreveram o tamanho das propriedades. Por uma simples regra de três, é muito provável que eles tenham mais de 1 milhão de hectares na Amazônia. E o levantamento não inclui os candidatos a vice-prefeito e a vereador.
Entre esses políticos que não deram detalhes sobre suas fazendas está o sojeiro Levi Ribeiro (Podemos), que disputa pela primeira vez uma vaga na prefeitura de São José do Rio Claro, no Mato Grosso. Ao TSE, ele declarou um patrimônio de 62,4 milhões de reais, dos quais 52,1 milhões de reais — recorde entre os candidatos a prefeito na Amazônia — referem-se a imóveis rurais. Nenhuma das catorze fazendas indicadas por Ribeiro em sua prestação de contas possui nome ou área. Em Rio Claro e Sinop, onde o nome do político aparece listado no Sistema Nacional de Cadastro Rural, do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), são 2.422 hectares. Ou seja, ele informou ao Incra possuir a propriedade, mas o TSE e os eleitores ficaram sem saber seu tamanho. Em Chapada dos Guimarães (MT) e Sambaíba (MA), onde Ribeiro também possui propriedades, conforme registrado na Justiça Eleitoral, não há titularidade de imóveis em seu nome. Quanto precisamente ele e outros candidatos possuem em terras rurais? O eleitor não foi informado — e esses políticos ainda não responderam aos pedidos de entrevista feitos pela reportagem.
Entre as propriedades na Amazônia dos candidatos a prefeito de todo o Brasil, porém, a partir do que eles permitiram a que se tivesse acesso, foi possível confirmar que 318.000 hectares, cerca de trinta vezes o tamanho de Hong Kong, ficam nos municípios do Arco do Desmatamento. As multas do Ibama e uma pesquisa da história de cada candidato mostram que não se trata apenas de uma coincidência. O desmatamento da floresta costuma ser acompanhado de outras práticas muito conhecidas no universo agrário brasileiro, como a grilagem e o trabalho escravo. Aqui não se está dizendo que todos esses políticos no Arco do Desmatamento foram acusados desses crimes. Muitos deles, sim.
Todos os mencionados neste e em outros textos sobre candidatos na Amazônia foram procurados pelo De Olhos nos Ruralistas/EL PAÍS, mas até o momento da publicação não deram retorno.
* Com equipe do De Olho nos Ruralistas.
Esta matéria faz parte de uma série de reportagens produzida pelo site De Olho nos Ruralistas, um observatório do agronegócio e das políticas ruralistas no Brasil. A série foi produzida com o apoio do Amazon Rainforest Journalism Fund (Amazon RJF), em parceria com o Pulitzer Center.