Os bancos de areia e o pouco de água que sobrou do rio Acre após seis meses de estiagem separam a aldeia do povo Piro, no Peru, da Reserva Extrativista Chico Mendes, no Brasil. Apesar de separadas oficialmente por uma linha imaginária da fronteira internacional, as duas regiões vizinhas tiveram problemas comuns este ano: as queimadas.
Enquanto o Brasil estava no centro do noticiário mundial por conta dos incêndios florestais, outros países da Amazônia também passavam - e passam - pela mesma situação.
A tríplice fronteira do Brasil com a Bolívia e o Peru retrata bem este que foi apontado como um dos momentos mais críticos para a sobrevivência da mais importante floresta tropical do mundo.
A região em que se encontram os três estados (chamados de departamentos nos países vizinhos) deste trio de países amazônicos é conhecida como MAP, uma sigla para Madre de Dios (Peru), Acre (Brasil) e Pando (Bolívia).
Segundo dados do Programa Queimadas, do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), foram detectados – entre 1º de agosto e 26 de setembro - 7.393 focos de calor na MAP. O Acre foi o campeão, apresentando 5.843 detecções via satélite. Em seguida vem Madre de Dios (1.084) e Pando (466).
Apesar das barreiras da fronteira e da diferença de idioma, eles vêm passando por problemas comuns nestes últimos anos: o aumento do desmatamento para a extração de madeira e a ampliação do pasto para o gado.
E um dos principais impactados é o rio Acre, que banha os três países. O resultado são grandes inundações mais frequentes que desabrigam milhares de pessoas e níveis críticos durante o “verão amazônico”, comprometendo o fornecimento de água potável para tantos outros milhares. O manancial é, para a maioria das cidades, a principal fonte de abastecimento.
Além dos aglomerados urbanos, a MAP ainda abriga populações tradicionais como as ribeirinhas, extrativistas e indígenas, incluindo os Yine Piro, no Peru. Do lado brasileiro, eles são denominados Manchineri, com aldeias espalhadas pela Terra Indígena Cabeceira do Rio Acre.
No Peru a área de proteção dos Yine Piro é a Comunidade Nativa Bélgica, também às margens do manancial, somando 53 mil hectares. Por ali vivem 150 pessoas. Neste período de seca, o rio não oferece condições de navegabilidade, sendo possível de ir uma margem à outra andando.
Essa proximidade faz os indígenas dos dois lados da fronteira estreitarem as relações, com os Piro peruanos construindo famílias com os Manchineri do Brasil. A melhor forma para se chegar até a aldeia é por um ramal dentro de Madre de Dios. São 28 quilômetros de uma estrada de barro desde a cidade de Iñapari.
Em agosto, uma queimada iniciada numa das fazendas vizinhas saiu do controle e entrou na área de floresta dos Yine Piro - praticamente a única vista nos quase 30 km de ramal. Até chegar ao limite da comunidade, só há áreas desmatadas e vestígios de queimadas recentes.
Coube aos próprios indígenas apagar o incêndio, porém com muitas dificuldades. Como não há fonte de água na região próxima ao fogo, ela precisou ser retirada do rio e de poços distantes 13 km dali. Daquele dia de susto, restaram apenas como marcas uma vegetação seca e troncos de árvores carbonizados.
“Estávamos em 20 pessoas correndo para apagar o fogo. A água era carregada em balde, trazida na carroceria de uma caminhonete. Contamos com a ajuda de um trator para abrir uma área e, assim, evitamos que as chamas se espalhassem mais. Começamos às 6h da manhã e terminamos às 4h da tarde”, diz Luís Añes de Andrade, filho do cacique Ilson Añes de Andrade.
“Quantos animais não morreram queimados? Encontramos alguns jabutis mortos. Se a gente não tivesse agido o fogo teria vindo até aqui a aldeia”, lembra a liderança.
Aos 64 anos, ele nasceu quando as terras de seu povo já tinham sido tomadas por um seringalista com o intuito de ganhar dinheiro a partir da exploração do látex. Com a falência da economia da borracha na Amazônia, o “patrão” deixou o Seringal Bélgica para trás, e a área voltou a ser de posse dos indígenas, reconhecida oficialmente em 1992.
Ilson Andrade reclama da falta de apoio do governo peruano na assistência às comunidades nativas do país. “Nós não temos o apoio do Estado, não temos o apoio em nada. Vivemos da caça, da pesca e da agricultura. Temos um posto de saúde, mas não há médico nem enfermeiro. Se quisermos remédios temos que comprar”, diz ele.
O fogo para preparar o roçado
Do lado brasileiro, o falido Seringal Bélgica passou a ser a Reserva Extrativista Chico Mendes, em março de 1990. A unidade de conservação federal estende-se por sete municípios do Acre, incluindo Assis Brasil. A cidade faz fronteira com Iñapari, separadas pela ponte binacional da Rodovia Interoceânica, que interliga o Brasil até os portos de Lima.
Em Assis Brasil está o segundo Pelotão Especial de Fronteira do Exército. É na base onde está parte dos bombeiros da Força Nacional solicitados pelo governo do Acre para auxiliar no combate aos incêndios florestais. No último domingo, 22, o Notícias da Hora acompanhou uma das operações de combate ao desmatamento e queimadas ilegais.
Além dos militares, dois fiscais do Instituto de Meio Ambiente do Acre (Imac) acompanham as ações aplicar as autuações aos infratores. Naquele dia, o alvo era uma derrubada detectada pelos satélites dentro do Projeto de Assento Extrativista (PAE) Santa Quitéria, a 17 km de Assis Brasil. A gestão destas áreas é de responsabilidade do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra).
Até o ponto detectado, são mais 15 km de ramal. De longe, a intensa fumaça revela que o fogo já consumia a floresta desmatada. Grandes troncos de árvore ainda carbonizavam, com o fogo consumindo a vegetação seca e o risco de adentrar na mata que ainda restava de pé.
Para evitar isso, os bombeiros da Força Nacional vão até o centro do foco fazer aceiros, isolando a floresta. Além de colocar fogo na vegetação mais próxima à mata, retiravam, com o uso de enxadas, pedaços de galhos e folhas ainda não queimadas.
Eles foram auxiliados pelos dois homens moradores daquele lote. Pegos em “flagrante”, tentavam num trabalho hercúleo apagar o fogo carregando água em baldes. Numa tentativa de escapar da penalidade, um deles chegou a informar aos fiscais do Imac que a propriedade estava dentro da Reserva Extrativista Chico Mendes.
Se assim fosse, eles não poderiam aplicar multas por ser uma área federal. Ao se consultar o sistema do GPA, viu-se que a reserva estava na outra margem da rodovia; não houve como escapar do auto de infração.
Segundo Wilson Freitas da Silva, 52 anos, aquela queimada tinha sido iniciada de manhã cedo. Ele diz que fez a derrubada para ampliar a área do roçado. “Estou aqui há oito anos e essa é a primeira vez que faço uma derrubada. Quero plantar banana, macaxeira, um pouco de arroz. Também quero ver se consigo um pouco de melancia. A nossa vida aqui depende disso, vivo só da agricultura”, comenta.
Fumaça nos pulmões
Na sexta-feira, 20, a cidade boliviana de Cobija, capital do departamento de Pando, amanheceu encoberta pela fumaça das queimadas. As condições para respirar eram as piores possíveis. Por vários dias, as cidades da tríplice fronteira ficaram com os céus cinza da fumaça das queimadas. No Acre, quase 55 mil pessoas passaram por algum tipo de atendimento ambulatorial na rede pública de Saúde por doenças respiratórias.
Em Cobija, o ambiente só melhorou após uma forte chuva no sábado que deu uma trégua nas queimadas em ambos os lados da fronteira, limpando o ar e livrando os pulmões da poluição.
Entre os três estados, Pando foi o que registrou o menor número de focos de calor entre agosto e setembro: 466. Apesar de a Bolívia também ter chamado a atenção do mundo por conta dos incêndios florestais, eles estiveram mais concentrados em Beni e Santa Cruz de la Sierra, mais distantes da fronteira com o Acre.
Segundo o antropólogo e pesquisador Guillermo Rioja-Ballivian, que mora em Cobija, este ano as queimadas em Pando foram praticadas mais pelos pequenos produtores para a “limpeza” de seus roçados, sem casos de incêndios descontrolados na floresta.
De acordo com ele, o uso do fogo nas regiões de Beni e Santa Cruz ocorreu por conta da política do governo boliviano de levar comunidades andinas para morar nas partes mais baixas do país, ocupadas pela floresta. Uma das primeiras atitudes destes novos moradores, explica ele, é desmatar e queimar para que possam plantar.