“Aqui não tem nenhum santo”. Moradores de Lábrea (AM) de diferentes perfis e classes sociais – grandes fazendeiros, pequenos agricultores, descendentes de soldados da borracha e madeireiros ilegais – repetem a frase numa tentativa de explicar por que o município, rodeado por áreas protegidas de floresta, é um dos mais violentos e desmatados da Amazônia. Naquela fronteira entre os estados do Amazonas, Acre e Rondônia, não há dados oficiais sobre a violência, já que são poucas as autoridades que chegam ali – seja para fiscalizar crimes ambientais ou para investigar os frequentes assassinatos. Já os satélites monitoram com precisão a destruição ambiental na região distante de qualquer centro urbano. E o que vêem é alarmante.
Lábrea é o segundo município de todo o bioma amazônico entre os mais críticos para a destruição da floresta. No ano passado, foi a quinta cidade da Amazônia Legal em incremento do desmatamento. Não por acaso, esteve na mesma posição do ranking das cidades que mais registraram queimadas entre janeiro e julho de 2019, segundo dados coincidentes do Ipam, no Inpe e do Imazon. Tanto os focos de incêndios como os de desmatamento concentraram-se no sul do município, onde fica o Seringal São Domingos.
Ao percorrer os caminhos barrentos do seringal, é possível visualizar todas as instâncias do processo que leva a floresta à morte. Na mata aparentemente cerrada, pequenas clareiras se insinuam, vestígios da passagem das skids, máquinas responsáveis por levar as árvores ao chão. Esses pequenos corredores levam ao coração da floresta – e para longe do escrutínio de uma eventual fiscalização – onde o corte seletivo de madeira pode acontecer livremente.
Lá, as toras de valor ficarão estocadas por um bom tempo, até que sequem. Na calada da noite – ou em plena luz do dia mesmo –, elas serão retiradas e levadas pelos caminhões-julieta às dezenas de serrarias próximas para beneficiamento e destinação ao mercado brasileiro e estrangeiro. Depois, vêm as queimadas que apagam o céu e escurecem a chuva de cidades a milhares de quilômetros de distância. E, por fim, o gado, o ponto final da sentença de morte da Amazônia.
A Repórter Brasil esteve duas vezes em Lábrea no ano passado – em junho e em novembro –, para conhecer o subterrâneo da destruição da floresta. Mas não só. Também as consequências nefastas que o desmatamento ilegal imprime na vida das pessoas. A região tem quase todos os mesmos elementos que outras áreas amazônicas desmatadas também têm: extração ilegal de madeira, queimadas, criação de gado, pouca ou nenhuma fiscalização ambiental, assassinatos “sem mandantes”, conflito por terras e ausência do Estado.
Porém, no Seringal São Domingos, todo o sistema de destruição da selva – e a sua consequente violência – parece elevado à milésima potência. A combinação entre localização remota, ausência de autoridades e completo caos fundiário tornam esse pedaço de terra um laboratório do crime. Ali, essa fórmula catalisa a grilagem, o desmatamento, a extração ilegal de madeira. E a morte. Em doses cavalares.
Se os interesses econômicos imprimem um caminho linear e ‘rentável’ para destruir a Amazônia, o processo que destrói vidas é mais complexo. Trata-se de uma Macondo invertida, um lugar governado por um surrealismo trágico, que substitui o clichê da Amazônia sem lei pelo da Amazônia de uma só lei: a entropia.
Terra abandonada
Em junho de 2019, quando estivemos pela primeira vez no Seringal São Domingos, as famílias que vivem espalhadas na gigantesca área de 150 mil hectares levavam suas vidas com aparente ‘normalidade’, dentro do possível nesta terra onde ninguém é santo.
Seis meses depois, na nossa segunda visita, não havia quase ninguém. As casas pareciam ter sido abandonadas às pressas: louça suja se acumulava nas pias, pertences pessoais ficaram para trás. Um sinal de que a fuga coletiva tinha sido repentina, como que motivada por força maior.
Um dos únicos que ali restou é Ivani de Souza Carmo, o Louro. Não por coincidência. Ele possui algo que ninguém mais tem naquelas bandas: um documento legítimo da terra. Ao redor do barracão de madeira onde vive, estão remanescentes do tempo em que ali era, de fato, um seringal, no auge do ciclo da borracha: um cemitério e restos dos trilhos por onde rolavam os carrinhos com o látex retirado das seringueiras por “soldados” da borracha, como o pai de Louro.
Sua família está no seringal há 64 anos – ele tem 53. Como posseiro, ele conseguiu uma certidão do programa Terra Legal, que reconhece a ocupação histórica da terra e o habilita a acessar linhas de empréstimos bancários. Neste que é um dos cantos mais sangrentos da Amazônia, o papel serve como um colete à prova de balas. “Aqui nunca ninguém mexeu comigo”, comenta. É dos únicos.
Discreto, Louro não fala abertamente sobre a fuga em massa. Pessoas que entrevistamos em Lábrea, no entanto, garantem que os ex-moradores do seringal fugiram da violência.
Enquanto conversávamos com Louro, que vive de algumas lavouras, da extração de castanhas e pensa em criar gado no futuro, homens com peças de fardamento militar caçavam na outra margem do rio, portando espingardas e uma escopeta. Na margem oposta, está a mata cerrada da Floresta Nacional do Iquiri. Não muito longe dali, há duas outras áreas protegidas, a Reserva Extrativista do Ituxi e a Terra Indígena Kaxarari. Como sempre no seringal, uma morte recente dominou a conversa com os caçadores.
Duas semanas antes, um homem chamado Denis havia sido encontrado morto. Os grupos de Whatsapp dos posseiros fervilharam com fotos do corpo, assumindo se tratar de mais um assassinato. O laudo da necropsia, feita na cidade mais próxima, Acrelândia, no Acre, dirimiu a tensão: a causa oficial da morte foi meningite.
Mas os caçadores não se convenceram. “Eu que encontrei o corpo. Tinha marca de bala no rosto e sinais de tortura”, garante o homem que não quis se identificar. “Como alguém que tá bem num dia pode morrer de meningite no outro? Foi morte matada”, atesta.
Esse será apenas mais um dos incontáveis assassinatos não explicados no Seringal São Domingos.
A contagem de corpos
Foi por um pedaço de terra do seringal que o mineiro Nemes Machado de Oliveira foi assassinado, em março de 2019. E foi esse o crime que nos levou até lá pela primeira vez.
Numa manhã de sábado, dia 30 de março, seis pistoleiros em três motos, todos armados, invadiram o seringal. Morador do primeiro lote, logo na entrada, Pedro Maciel, paranaense de Terra Roxa, foi o primeiro a ser abordado. Dois pistoleiros ficaram com ele. “Mandaram eu pegar meus documentos, porque iam queimar minha casa”, conta por entre os escombros do barraco.
De lá, os outros pistoleiros seguiram para a propriedade de Nemes. Era cedo, ele tinha tratado dos bichos e estava tomando café. Não teve tempo de subir as escadas para se esconder dos jagunços dentro de casa. Foi alvejado nas costas e caiu próximo aos degraus. Morreu por volta das 7h. Sua casa também foi queimada.
O boato chegou a Acrelândia, onde ficam vários dos posseiros durante a semana, por volta das 15h. A polícia do Acre, mais próxima, não podia cruzar o limite do estado para resgatar o corpo no Amazonas. E a polícia do Amazonas não foi, por conta da distância. Coube a Kailon, filho de Nemes, e a um cortejo de posseiros ir buscar o corpo. Só conseguiram chegar ao seringal na tarde do domingo. Nemes já estava em decomposição e escurecido pelo fogo que destruiu a casa. Ao lado dele, cartuchos de munição .38 e .22.
A execução de Nemes gerou um inquérito da Polícia Federal. Segundo o órgão, a investigação está em andamento e, por isso, não podem ser divulgadas maiores informações. Sua morte foi uma das 32 que aconteceram no campo em 2019, segundo relatório recém-divulgado pela Comissão Pastoral da Terra (CPT), que aponta aumento de 14% na violência a pequenos agricultores, indígenas e quilombolas no país.
Reconstituindo a narrativa do assassinato de Nemes a partir dos depoimentos dos posseiros, vêm à tona outras mortes de pessoas que se envolveram com terras no São Domingos. Primeiro, a do vereador de Porto Velho, Joaquim Vilela, o Pitico, em 2017. Depois a de seu irmão Gabriel, em 2018. Fora os que foram alvo, mas sobreviveram.
O paulista Luiz Poklen, de 65 anos, é um deles. Para ele, a contagem de vítimas, de 2015 até aqui, não fica abaixo de 60 mortos e feridos. Em 1º de agosto de 2017, ele mesmo entrou para essa estatística. Estava de moto, com o filho, em um dos ramais que cortam o seringal, quando tomou dois tiros de espingarda “chumbeira”, um atrás do ombro, outro na boca. O chumbo que perfurou sua boca foi parar na costela do filho. “Só não morri porque estava armado”, diz. Ele alega que pistoleiros estiveram no hospital para terminar o serviço, mas os policiais de plantão impediram a execução.
Sem santo, sem vilão
Nas conversas dos posseiros do São Domingos, quase tão frequentes como as mortes são as menções a três nomes: Volnei Roberto de Pádua, Valmor Dilli e Carlos Roberto Passos.
Valmor Dilli é um grande empresário do setor madeireiro em Nova Califórnia, cidade a cerca de 70 quilômetros do seringal. Só no distrito, ele tem duas serrarias e uma beneficiadora. Exporta boa parte de sua produção para a Europa. Além de extrair madeira na região, sua trajetória converge para o São Domingos, pois ele comprou, em 2018, pouco mais de 2.300 hectares de terra dentro do seringal.
Como todos os que se envolvem com terrenos no São Domingos, não demorou muito para que Dilli mesmo sofresse um atentado. Na manhã de terça-feira, 23 de abril de 2019, contou oito tiros disparados em sua direção quando dirigia sua caminhonete. Chegou a ser atingido, mas sem maior gravidade e foi liberado do hospital no mesmo dia.
“Foi um ataque premeditado, com tudo montado. Logo depois, já tinha notícia”, conta. Uma dessas notícias, veiculada num jornal digital local chamado ACJornal.com, estampava na manchete que Dilli seria o mandante do ataque que matou Nemes. “Me jogaram contra os posseiros, mas isso já se esclareceu. Eu não tenho nada contra eles”, disse em entrevista à Repórter Brasil. Atualmente, os posseiros alegam que Dilli os ajuda na abertura e manutenção das estradas no seringal.
Já Pádua é o grande responsável pela presença da maioria das mais de 100 famílias que reivindicavam lotes dentro do São Domingos – antes da fuga coletiva. Foi ele quem, a partir de uma escritura fria, negociou – e em alguns casos, até doou – as terras aos posseiros que viviam na área. Era com Pádua que eles faziam contratos simples de compra e venda, sem qualquer valor jurídico para fins de registro de imóveis.
Para os posseiros, é Pádua quem está por trás dos atentados e mortes dos últimos anos. Na visão deles, em entrevistas concedidas em junho, Pádua estaria querendo expulsá-los, agora que muitos já fizeram benfeitorias em suas terras, com a intenção de atrair um novo grupo e revender os mesmos lotes grilados.
Também dono de uma extensa ficha criminal, que inclui estelionato e roubo, Pádua é praticamente um fantasma, cujo paradeiro ninguém conhece. A reportagem buscou inúmeras formas de contato, mas não conseguiu localizá-lo.
Embora o nome de Pádua seja sempre lembrado como o responsável por ordenar a matança no São Domingos, há outro que parece inspirar o mesmo temor. Ou mais. O de Carlos Roberto Passos, um madeireiro que afirma atuar na legalidade e que começou a entrar na área do São Domingos em 1999.
“O São Domingos é uma fraude e eu posso mostrar os caminhos dessa fraude. Os 150 mil hectares já são mais de 1,5 milhão”, atesta.
Na métrica de Passos, as vultosas cifras de grilagem de terra do seringal são proporcionais à contagem de mortos. “Eu falo pra você, sem dúvida: de 2010 pra cá, já morreram bem mais de cem pessoas”, diz.
Impressionante, também, é outro número: o de atentados que Passos conta ter sofrido. Em junho de 2019, eram 10. No início de dezembro, 15. Tanto que sua forma de garantir a segurança mudou entre uma data e outra. Da primeira vez que conversamos, em sua casa em Rio Branco, um vigia guardava a residência do lado de fora. Quando voltamos, a segurança estava na própria cintura de Passos.
Ele presta serviços de extração de madeira. Conhece o ofício como ninguém, do maquinário ao funcionamento dos planos de manejo, às próprias árvores. “Já fiz muita extração ilegal, mas agora não mais”, garante. Na segunda vez em que conversamos, me mostra um vídeo no celular. Seu filho mais velho, na boleia de um caminhão, ouvindo música romântica, de madrugada, “puxando madeira”. Ele se emociona. “Esse é o nosso sonho. Só isso.”
A mãe de todos os crimes
O seringal São Domingos é o balão de ensaio perfeito para diversos crimes. Mas a mãe de todos é a grilagem de terras. A absoluta falta de informações confiáveis sobre a quem pertencem, de fato, praticamente todos os lotes por ali torna possível sua apropriação ilegal, seja pelo uso da força, seja pela documentação criativa. No São Domingos, prevalecem os dois.
Joel Bogo, procurador do Ministério Público Federal de Rio Branco, afirma que a grilagem se escora em um cálculo simples. “É uma conta de risco versus retorno”, diz. Terras griladas são muito mais baratas do que o valor de mercado. Se uma operação dá certo, o lucro do infrator é enorme. “Eles invadem novas áreas esperando que os marcos de regularização sejam flexibilizados”, completa.
E, muitas vezes, os marcos são flexibilizados e os ladrões de terra terminam se dando bem – com o apoio do governo. Os grileiros de Lábrea estão prestes a ter um retorno e tanto por conta Medida Provisória 910, editada pelo governo do presidente Jair Bolsonaro em dezembro de 2019, que permite que áreas públicas desmatadas até dezembro de 2018 sejam regularizadas. “Essa medida premia quem ocupou e desmatou, quando deveríamos estar fazendo o contrário”, afirma Brenda Brito, doutora em Ciência do Direito pela Universidade de Stanford e pesquisadora do Imazon (Instituto do Homem e Meio Ambiente da Amazônia).
No caso específico do São Domingos, um outro estímulo a quem ocupou irregularmente e pela força, degradando a floresta, também pode estar a caminho. A Floresta Nacional do Iquiri foi incluída pelo governo no Programa de Parcerias de Investimentos (PPI) e pode ser concedida à iniciativa privada para atividades como a extração de madeira. A área tem 1,4 milhão de hectares, maior que Montenegro, país do Leste Europeu.
Grilagem secular
Pode-se dizer que essa saga de sangue nesta região da Amazônia começou há mais de um século. No dia 15 de novembro de 1899, foi selado o destino sangrento que hoje assola os ocupantes da região conhecida como Seringal São Domingos.
Naquele dia, em Riberalta, na Bolívia, foi feito o registro de um título “do lugar denominado Santo Domingo”, como diz o documento original, com marcos geográficos vagos, mas com área aproximada de 150 mil hectares, dentro das fronteiras brasileiras. Foi a partir desse documento boliviano que se criou o empreendimento imobiliário Seringal São Domingos, mas a primeira matrícula brasileira data de 1976.
Na prática, o seringal não passa de uma abstração. Mas isso não impediu que, a partir dele, fossem emitidos, desdobrados, desmembrados, sobrepostos, realocados, grilados, vendidos e revendidos títulos e mais títulos de terra.
“É uma região sem fim. Ninguém sabe quem está certo ou errado, se a terra é pública ou privada”, resume o defensor público do estado do Acre, Celso Araújo.
Por entre o caos fundiário, a maior esperança dos posseiros é que o Incra (Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária) esclareça, de uma vez por todas, a situação real dessas terras. Mas a visão do ouvidor agrário no Acre, Antonio Braña, não oferece muito alento. “Há complexidade no entendimento jurídico e o Incra não tem certeza da situação fundiária dessa gente. O cartório de Lábrea é – ou era – uma bagunça. Mas eu diria que é uma ocupação irregular tanto de grandes como de pequenos [proprietários]”, explica.
Em 2004, o Incra ajuizou uma ação na Justiça Federal no Amazonas questionando a validade do título boliviano e requerendo a anulação das matrículas baseadas nele. Em 2013, o pedido foi deferido em primeira instância e 28 matrículas foram canceladas. A princípio, a terra voltaria para as mãos da União. Mas houve recursos por vários desses interessados e o processo segue tramitando, agora em segunda instância, no Tribunal Regional Federal da 1ª região.
Entre as matrículas canceladas, talvez a mais célebre seja a de número 1741, que Pádua adquiriu por R$ 8 mil 1994 – o equivalente a hoje R$ 61 mil – e que custou várias vidas, como a de Nemes.
Por implicação dessa ação, processos criminais foram abertos contra alguns dos alegados donos de terra no São Domingos. O Ministério Público Federal (MPF) os acusou de formação de quadrilha, estelionato, crime contra a administração ambiental e invasão de terras públicas. A peça do MPF descreve em detalhes a atuação do grupo.
“Trata-se de grilagem com modus operandi peculiar, pois consistia na clonagem de documentos legais, fazendo-se um novo registro do imóvel em local diverso, de forma a possibilitar a extração de madeira e posterior revenda, para que fosse utilizada como fazenda de gado”, diz o documento.
Entre os acusados, estavam o então oficial do cartório de registro de imóveis de Lábrea – responsável, entre tantas outras, pela matrícula 1741 –, Antônio Luiz Mendes da Silva, falecido, e Carlos Celso Ribeiro, ex-prefeito da cidade acreana de Senador Guiomar, que, segundo os ocupantes do São Domingos, é dono de terras vizinhas ao seringal.
Outro acusado no processo criminal, Arnaldo Vilela, agiu, segundo o MPF, como “mestre na arte da grilagem”. A ação conta que Vilela alterava o memorial descritivo dos terrenos, até chegar a um ponto de que a “nova localização do imóvel de matrícula 1.637 está, efetivamente, a 71,56 Km da localização anterior”, segue a acusação.
O processo já gerou diversas condenações, mas segue tramitando em função das apelações dos acusados.
Sonhando com bois
“Faltavam poucos metros de cerca pra gente poder botar gado aqui”, lamenta Kailon, o filho de Nemes, uma das vítimas desse conflito antigo, alguns meses antes de abandonar o seringal por receio de ter o mesmo destino do pai. Kailon tinha um lote vizinho ao de Nemes, morto em março de 2019. Para conseguir o rebanho, eles planejavam propor sociedade em regime de meia com o proprietário de uma grande fazenda vizinha.
Seja um pequeno ou grande proprietário de terra, todos os ocupantes do São Domingos têm o espírito de pecuarista. Diferente de outras regiões de conflito fundiário conflagrado na Amazônia, lá não há movimentos sociais organizados, nem uma dimensão política de luta pela terra.
Alguns dependem até do Bolsa-Família, mas reivindicam áreas grandes, de 100, 200, 300 hectares. Para dez entre dez, a glória suprema seria criar boi. “É o gado que tira o homem da miséria”, diz Agrecino de Souza, radialista e ex-vereador de Acrelândia, que nos guiou em nossa segunda passagem pelo seringal.
Em comum, também, há a concepção de que a floresta é um obstáculo para conquistar essa vitória. E se, para os grandes proprietários da região, por menor que seja a fiscalização, há algo a perder, a insegurança fundiária vivida diariamente por esses pequenos posseiros os faz relevar completamente a legislação ambiental. Sem terra regularizada, não há nada a perder.
“Aqui nós não derruba castanheira, nós só derruba cumaru de bola”, brinca um deles, ironizando a lei que proíbe expressamente a derrubada da castanheira. Cumaru de bola é o nome inventado por eles, jocosamente, para despistar sobre o fato deles derrubarem a árvore protegida. O efeito desse raciocínio é visível no seringal. Muitos vivem da madeira, ainda que sonhem com o gado.
A morte da floresta
Ainda que moradores da região sonhem em se tornar pecuaristas, o distrito mais próximo do seringal é uma prova do que movimenta, hoje, a economia local. Ao entrarmos em Nova Califórnia, pertencente a Porto Velho, Rondônia, o que se vê é um futuro distópico. Serrarias dos dois lados da estrada; uma oficina mecânica com carcaças de máquinas utilizadas no desmate, outras sendo consertadas na rua principal. Ao fundo, um imenso forno de outra serraria.
Alguns quilômetros ramal adentro, mais um grande empreendimento de beneficiamento de madeira, a Madeireira São Pedro. Um empresário local do ramo garante que a empresa pertence, de fato, a Chaules Volban Pozzebon. Trata-se do homem considerado o maior desmatador do Brasil. Preso em 2019, pela Operação Deforest da Polícia Federal, ele possui 120 madeireiras em toda a região Norte, seja em nome próprio, seja no de laranjas.
No ramal que conecta Nova Califórnia ao São Domingos, embora sejam claros diversos níveis de agressões à floresta, há poucas áreas de corte raso. Ao chegar na entrada do seringal, abre-se uma clareira, com apenas pequenos retalhos de floresta primária. Quase toda a madeira de valor já se foi. Restam algumas majestosas sumaúmas, madeira de segunda para eles, espécies menores. E pasto.
Os parcos estoques de madeira-de-lei remanescentes em seus lotes são vistos como moeda corrente. Em junho, quando estivemos lá pela primeira vez, os posseiros fizeram uma vaquinha para pagar a diária de aluguel de uma motoniveladora, o combustível e a remuneração do operador da máquina. Alguns entraram no rateio com dinheiro. Outros, com toras.
Em uma tarde de novembro, a atmosfera defumada pelas queimadas ainda era perceptível no lote de 100 hectares de um posseiro conhecido como Carneiro. Ele derrubou a maior parte da cobertura vegetal de sua área – muito mais do que os 20% que lhe caberiam, fosse essa uma ocupação legal de terras no bioma amazônico – para plantar 40 mil pés de banana. “Ainda quero plantar mais 20 mil”, planeja. Entre o verde dos brotos de meio metro de altura, troncos e restos de floresta carbonizados.
Em sua longa ficha criminal, em que também aparece a alcunha “Lobisomem”, a disposição para o trabalho de Carneiro parece estar a serviço do tráfico de drogas. Em um dos processos a que respondeu, que o levou à cadeia em flagrante, foi pego com 1,84 kg de cocaína.
O filho de Carneiro nasceu na Bolívia, onde ele diz que planta castanhas para depois vendê-las no Brasil. O histórico de Carneiro não é desconhecido dos outros posseiros da região. Há especulações, inclusive, de que o negócio principal dele na Bolívia não sejam as castanhas. Mas isso não se contrapõe, nas falas dos posseiros, à sua qualidade de trabalhador. Ao contrário. O seringal parece ter essa vocação: a febre da terra releva qualquer passado.
Esse ganancioso imaginário explorador e colonizador – seja para a extração da madeira, a venda de castanhas ou a criação de gado – é o combustível da febre da terra no São Domingos. Por ela, todos ali podem ser considerados vilões. Pequenos e grandes desmatam sem qualquer pudor. Mesmo com uma fiscalização precária, os grandes personagens dessa saga acumulam milhões de reais em multas ambientais. A vocação da terra é largamente ignorada em nome da obsessão pecuarista, que, ali, devasta um hectare de floresta para abrigar apenas um boi.
Ao mesmo tempo, todos são igualmente vítimas, tanto do caos fundiário que impera na região como da violência desenfreada – e sem nenhuma esperança de solução.
*Essa reportagem foi produzida com financiamento do Rainforest Journalism Fund em parceria com o Pulitzer Center.